Terminou no passado dia 28 de Setembro a exposição evocativa do cinquentenário da morte de Nuno de Montemor, fundador do Lactário. A exposição, a que foi dado o título «Nuno de Montemor – Alma Brava e Meiga», esteve disponível ao longo de quatro meses, primeiro na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço da Guarda (BMEL) e, mais recentemente, no Museu do Sabugal.
Dada esta circunstância, disponibilizamos aos nossos visitantes o Castelo do Sabugal, tal como ele foi pintado pelas letras de Nuno de Montemor, numa das obras mais conhecidas do escritor, o romance «Maria Mim». É mais um texto para enriquecermos a antologia do cinquentenário que temos vindo a construir no presente ano celebrativo de 2014.
O Castelo do Sabugal
Erguidos, outrora, para vigia e defesa dos campos e das cidades, os castelos de Portugal mostram-se hoje caídos em recintos silvosos, agressivos, como se neles, a guardá-los contra nós, se emboscassem os dragões das lendas inimigas, ou lembram ruínas conspurcadas por mãos estrangeiras, a repelirem os visitantes que deles se abeiram em patriótica romagem.
Fendidos pelos raios das nuvens, esburacados pelos ferros dos pelouros, alguns desses gigantes, heróis queimados nas batalhas dos séculos, alteiam-se ainda de pé, embora diariamente mutilados pelos habitantes dos povoados vizinhos, que, membro a membro, os vão desarticulando, para com eles empedraram as ruas ou construírem arrebicados chalets.
Não aconteceu, porém, assim ao castelo do Sabugal.
Intacto, garboso e sempre vivo, continuamente embalado pela água azul do rio Côa, que, em jeitos de pajem, graciosamente se lhe curva, a banhá-lo, dir-se-ia que os seus fundamentos criaram raízes vegetais, no leito do rio, tão viçosa é a escarpa íngreme que a ele conduz, e sobre a qual o castelo assenta, enramado de heras e flores, como altar de Maio em constante Primavera.
Entre o rio fundo e a muralha alta, quase a fechar a ponte musgosa de D. Dinis, vê-se, à guisa de oratório, onde mal caberia o capitão na hora de ir para a guerra, uma capelinha branca enquadrada em perpétua guarda de honra por quatro ciprestes miúdos e mirrados, a evocarem as sombras e as lanças dos últimos cavaleiros que ali as deixaram na hora de morrerem.
E que paz evocadora neste ambiente de lenda!
Afora o murmúrio espumante dos açudes, à beira dos moinhos de tectos enfarinhados, e o barulho amoroso das aves que o habitam, nada mais se ouve à volta deste silencioso alcácer de Riba-Côa, onde se imaginam, refugiados e gratos, os espíritos batidos das outras fortalezas desmoronadas: almas de príncipes e infantes, pajens e trovadores, guerreiros e donas, transmigrados por milagre de graciosa lenda, nos bandos de pombas que incessantemente esvoaçam acima das ameias.
Belo e encantado castelo de cinco quinas, como, no dizer do povo, não há outro em Portugal!
Que o rio encurvasse, pela nascente, um braço, a enlaçar a cintura da vila, para a mudar numa ilha branca e verde, e o tão enamorado Almourol não passaria de um pobre e ressequido esqueleto.
Por isso o alferes Marinho, com demora no Sabugal, por concessão do ministro, não se conteve que não exclamasse deslumbrado:
«Mais belo que Almourol!»
E sentado para além do rio, numa encosta pedregosa e barrenta da margem esquerda, à sombra rendada dos castanheiros ainda mal reverdecidos, esqueceu o almoço da pensão, de olhos presos no vulto airoso e forte do castelo.
Visto assim, a distância e de mais alto, surgia-lhe à frente da vila, acampada em tendas de guerra, sozinho, perfilado, no eterno comando das terras vermelhas de Riba-Côa, que o rio azul largamente lavrara em margens opulentas, coloridas pelo oiro ondulante das searas e pelo verdejar das veigas floridas.
E nesta deliciosa evocação das velhas eras se abismaria, horas sem termo, a fantasia do militar-artista, senão avistasse um vulto feminino a descer a estrada aberta entre a escarpa norte da fortaleza e a rampa funda, quase vertical, que abruptamente desde até ao rio.
«A Maria Mim!...» - murmurou erguendo-se surpreso.
E em passo rápido galgou o declive dos castanheiros, ao encontro da quadrazenha, que, por entre cortinas altas de buxo, plantadas nas bermas da estrada, se dirigia vagarosamente, à capelinha da ponte, onde a viu cair de joelhos.
Nuno de Montemor
- Maria Mim -
(Romance, 1939)