- Antologia do Cinquentenário -
No cinquentenário da morte do escritor Nuno de Montemor, que continuamos a comemorar, divulgamos hoje, para a nossa «Antologia do cinquentenário», mais um texto deste escritor.
Neste início de Setembro, em que o calor ainda aperta, sugerimos a leitura de mais um texto, retirado de um dos últimos romances daquele escritor, a que demos o título «O primeiro desgosto do menino de sua mãe». Na sua leitura ver-se-á por que razão.
O texto poderá também ser visto como uma espécie de metáfora do nosso trabalho educativo neste início de um novo ano escolar. «De mãos dadas» façamos tudo para que nada falte ao desenvolvimento das nossas criancinhas.
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Era ainda de peito, quando o pai, morto dois anos depois, arrendara a propriedade, então mal dessaibrada e pouco fértil.
A mãe, pobríssima, levava-o à cabeça entre envoltas e cueiros, numa velha canastra que fora caixa entrançada de sardinha, e deixava-o, adormecido, à beira-rio, na sombra fresca das árvores, enquanto durava o trabalho.
Depois, o tifo arrebatara-lhe o pai, e aos cinco anos, já a mãe lhe aproveitava o préstimo de criança.
Do fundo da leira, durante a rega, para ganhar tempo, ela gritava-lhe: «ó Júlio, volta o tornadoiro».
E logo ele tomava, nas mãozinhas, o sacho pelo olho, por lhe faltar altura e braço para o cabo longo, a abrir, como a brincar, a entrada do rego seguinte. E o seu coraçãozinho terno rejubilava quando a mãe de novo lhe bradava: «já chegou a água. Volta para outro».
Se, porém, a água tardava, a mãe, para não magoar as plantas viçosas e tenras com o pano da saia grossa, mandava-lhe outra ordem: «mete pelo rego, que há furo de toupeira».
E ele deslisava, então, cauteloso, o corpito fino e leve, entre a verdura mimosa e densa, até achar a toca por onde a rega se escapava.
«Cá está mãe!» - bradava triunfante.
E com os pezitos nus, calcava a terra a tapar o sumidouro.
«Pronto, mãezinha, a água aí vai».
E horas depois, na terra enxuta, serpenteava lesto, miudinho e vivo, como doninha entre as plantas, a mondá-las dos bichos e das ervas.
A grama, o corriol, a gorga, a azevém, a milhã e a magarça, todos os vegetais daninhos o temiam.
«Não que eles em me vendo, já me conhecem…» - assegurava, animoso, para a mãe contente.
Assim animadas, as plantas úteis sorviam toda a seiva e cresciam com gabo dos que passavam.
- Oh! Rosa! Não se vê fio de erva nem terra limpa como a tua! – Louvavam, parados, embevecidos, a olhá-la do caminho – Quem viu a veiga e quem agora a vê…
- É este passarinho que anda à inveja com os outros pássaros, a cortar-ma – explicava, orgulhosa, de olhos postos no filho.
Aos dez anos já ele vigiava o renovo com ciência e carinho de homem, mas quantas vezes a terra mal dava para a renda e havia fome.
«Mãe, a horta está amarela, apanhou maleita» - avisava, alarmado.
Então, na Primavera, nunca se deitava sem espiar o céu e as nuvens.
«Amanhã, temos geada. Acorde-me cedo, mãe».
E o Júlio, de regador no braço, ia dissolver a geada branca das folhas, antes que o sol nascesse, a queimar o renovo.
No Verão, ao romper do sol, e, de noite, ao luar ou à luz da lanterna, lá andava ele, quase da altura das plantas, na caça das lagartas, que, durante a calma, es escondiam nas raízes frescas.
A esse tempo, de madrugada, a cotovia, e, de noite, o rouxinol, cantavam a adoçar-lhe a tarefa.
E sorria, se entre as plantas encontrava um sapo caçador, a ajudá-lo.
«Olá, amigo» - saudava, a rir, afectuoso.
- Vais aqui ter um homem, Rosa! – Elogiavam os vizinhos, pondo-lhe a mão na cabeça esperta. – Isto dará que falar».
- Sabe-se lá. A sorte é Deus que a talha.
Assim corria a vida de Júlio Brás menino, e como da morte do pai se não lembrava, o seu primeiro desgosto sofreu-o ao saber um dia que a terra não era deles e que os Silvestres podiam, quando quisessem, arrendá-la a quem mais desse.
- E então nós, que lhe queremos tanto, perdíamos a veiga? – Chorou angustiado.
- Ela não é nossa, filho.
- Mas então?...
E a voz afogou-se-lhe na garganta.
Nuno de Montemor
- O Crime de um Homem Bom -
(Romance, 1945)