Já o recordámos aqui: a obra de Nuno de Montemor, tanto na romanesca como nos livros de contos, está recheada de belos textos onde são tratados literariamente tradições e costumes da Beira.
Como nos encontramos no mês de Agosto, época em que se procedia, outrora, à ceifa, malha e recolha do centeio que era produzido em larga escala nos campos da nossa região, tristemente abandonados no presente, trazemos hoje à lembrança de todos um texto do escritor em que ele retrata a antiga malha do centeio com manguais nas eiras das nossas aldeias.
Com este texto enriquecemos a nossa antologia que vimos construindo no cinquentenário da morte do escritor beirão.
Com o mesmo texto julgamos ainda poder enriquecer o enquadramento da visita ao Museu do Pão que as nossas crianças mais velhas realizaram há algumas semanas.
Com a devida vénia, ilustramos o texto com dois quadros de Alcínio Vicente.
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Como na aldeia onde todos possuíam a sua casa, também todos ali tinham o seu pão.
E, durante um mês, aquela eira enorme que, no tempo da relva verde do Inverno, era logradouro comum, onde os pobrezinhos sem prados repastavam o seu jumento e a sua cabra, convertia-se, em Agosto, numa outra aldeia, habitada por meia população, que lá trabalhava e dormia.
Em cada eirado, pelo dia fora, do nascer ao por do sol, as gavelas ceifadas desatavam-se e estendiam-se em camadas sucessivas, e duas filas de malhadores, os rostos contra os rostos, vestidos de linho branco, cabeças descobertas, descalços, vermelhos, suando fogo, batiam-nas, desesperadamente, com manguais, ora avançando, ora recuando, alternadamente, uns contra os outros, enquanto o grão, saltando da espiga, parecia granizo de oiro a cair, do sol, sobre a palha esmagada.
- Eh! Rapazes! – Gritava-se, animadamente, de uma fila, erguendo os manguais, puxando rijo.
- Eh! Lá pimpões! – Responde-se da outra, a rir, com igual bravura.
E os manguais duros, rápidos, violentos, caem, surdamente, sobre as espigas, em estampilhos cavos, que se ouvem na povoação afastada.
Tram! … Tram! … Tram! … Tram! …
Tram! … Tram! … Tram! … Tram! …
Os pírtigos dos manguais, subindo, rápidos, dois metros acima das frontes, contorcem-se nas correias nervosas, e quando, após a pancada se erguem, de novo, levantam palhas e espigas cortadas que esvoaçam.
As duas filas rivais, no esforço, aproximam-se tanto, no recuo e no avanço, que, a todo o momento, se pode recear pelas cabeças dos malhadores.
Mas por todos os eirados, em todas as malhas, os estampidos surdos dos manguais, sobre as espigas, são apenas o fogo vivo de uma batalha incruenta.
Tram! … Tram! … Tram! … Tram! …
Tram! … Tram! … Tram! … Tram! …
E as aspirações cálidas e ofegantes dos malhadores ouvem-se por arrancos guturais, ao assentarem nas espigas, os pírtigos de freixo.
Han! … Han!... Han! … Han! …
Han! … Han!... Han! … Han! …
Os manguais batem e rebatem toda a palha, que se ergue, momentaneamente, com a violência da pancada, e as espalhadeiras, veladas as cabeças e as costas com sacos, em bloco, a defender os cabelos e os olhos das praganas, andam, cautelosas, rápidas e curvas, atraz e ao lado dos malhadores, a voltar as espigas, chegando, velozmente, aos manguais, algumas que saltam para as extremidades.
- Eh lá, mãozinha de prata! … - Acautela um malhador, no receio de esmagar os dedos de uma rapariga, que se demora mais um instante, entre as espigas loiras.
E a malha não pára, prossegue sempre, com maior fogo:
Tram! … Tram! … Tram! … Tram! …
Tram! … Tram! … Tram! … Tram! …
No último dia, à última camada de espigas, os malhadores, sempre batendo a eira, pedem, numa vozearia alegre e prolongada, que chega longe, à cozinha do lavrador, a gulodice final das malhas.
- Filhó! … ó … ó … ó ó … ó …
E na abóbada celeste daquele tórrido Agosto, feita de bronze turvo em fusão, fica, largo tempo, a reboar, vibrante e trémulo, o grito dos malhadores, como o interior de um sino imenso, após a última badalada:
Ó … ó … ó …ó … ó … ó … ó … ó …ó … ó …
Depois, as vozes emudecem, os braços, os peitos e as pernas retesam-se e contorcem-se no último arranco, ouvindo-se apenas o som violento dos manguais sobre a última camada de espigas:
Tram! … Tram! … Tram! … Tram! …
Tram! … Tram! … Tram! … Tram! …
Nuno de Montemor
Pobrezinhos de Cristo
(Contos, 1930)
- Início do conto A Rosa-Riso -