No cinquentenário da morte do escritor Nuno de Montemor, que estamos a comemorar, divulgamos hoje, para a nossa «Antologia do cinquentenário», um dos seus poemas mais conhecidos no meio guardense. Trata-se de um poema que é também uma homenagem à Guarda. Vale a pena saboreá-lo com vagar e inteirarmo-nos do amor que o escritor dedicava à nossa cidade.

Em 1925, no livro de poesia «Amor de Deus e da Terra», o poema aparece com o título «Terra alta» e em 1959, inserido no livro de contos «Rapazes e Moças da Estrela», surge com o título «Canção da Estrela». Divulgamo-lo aqui com os dois títulos.

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TERRA ALTA
Canção da Estrela

Minha Terra alta de azul e neve, como eu te
quero e tão mal te julgam!
Os outros dizem-te falsa porque lhe faltas e
só a mim te dás;
Chamam-te feia, porque só a mim sorris.
Mas, em paga, reconhecem-te forte, porque
me és fiel!
E, se te encontram fria, é no Inverno, quando
te despem.
Quando já não és farta, porque lhes deste
os frutos…

Nos meses em que és morena de trabalhar
ao sol,
Eles querem-te pelo pão das tuas searas…
E quando o Inverno te bate e te fustiga.
Eles maldizem-te, enquanto queimam nos
lares a lenha dos teus campos.

Mas como hão-de querer-te, minha terra alta
de azul e neve,
Se, entre tantos, só eu te compreendo e
amo!

Da tua imensidade, eles só vêem o pão
quando o recolhem,
E eu admiro em ti a virtude excelsa com.
que o crias.

São minhas as árvores das tuas serras,
Quando têm flor,
São deles os frutos quando os recolhem…
É meu todo o oiro das ceifas, quando está
nas espigas,
É deles todo o grão, quando o levam ao
celeiro.

E este oiro e estas flores são o tributo que
me pagam,
Porque eu sou o teu Senhor, minha terra
alta de azul e neve!
Os teus lavradores são meus caseiros, os
teus ricos-homens são meus vassalos!

Eles querem-te pelos teus frutos, para a sua
boca,
Eu quero-te pela Beleza, para a luz viva dos
meus olhos.

Eles tiram das tuas mãos o que tu crias,
mas as tuas mãos ficam só minhas…

Apreciam-te às leiras, aos torrões, nos dias
mansos e férteis
Eu amo-te sempre, nos dias bons e nos
dias maus.

Não tenho em ti as terras grandes, para as
lavrar,
Mas possuo-te inteira, no esplendor das serras
e dos vales.

E, se o céu me não concedeu braços para
te cavar,
Os meus olhos têm asas grandes para te
abraçar.

Aos outros, dás-lhes, do teu açafate, o trigo
branco da caridade…
Dás-lhes do teu pão e da tua água, dos teus
frutos e das tuas searas…
Mas, ó minha terra alta de azul e neve,
É para mim que guardas o esplendor de
tudo o que olhas,
Porque é teu império de beleza de todos os
campos e serras que de ti se avista!

E como eu te revejo nas tuas galas de
Rainha!...

Em Março trajas de verde, em Junho de
oiro,
Em Outubro vestes de púrpura e em Dezembro
de branca neve.
Mas, quando eu te quero e mais te
admiro,
É quando o Inverno te despe e todos te
maldizem,
Ao verem-te azul e roxa, no esplendor
olímpico da tua nudez!

As tuas montanhas e colinas parecem, então,
de um duro aço,
Mas nos dias claros, quando o sol te banha,
Ficas azul e roxa, como se o frio e o vento
Mortificassem a carne mimosa e tenra de
uma criança.

Para te dulcificar a dor, o Mondego e o Coa.
ajudados das suas ribeiras,
Cobrem-te às manhãs, o corpo na macia
alvura da sua névoa,
E, por dezenas de léguas, do Marão ao Tejo
da Espanha ao ar,
Até onde se estende o reflexo azul-império
da tua fronte,
Ficas mergulhada, a sorrir, num oceano
vasto de leite!

De fora, a olhar o sol e o azul sem
mácula,
Ficam apenas a garganta e o rosto, no
alto, a dominar!

E, então, as janelas das tuas casas e os picos
azuis dos teus montes
Brilham, como diamantes e safiras, no teu
colo de rainha!

E, mais ao largo, boiando no mar leitoso
e dormente,
As lombas acasteladas das serranias de aço
Que se encadeiam, altivas, dos Hermínios
à Marofa
São os navios fortes que guardam, desde
sempre, o império da Estrela!

E porque assim és rainha e valente, neta
de Viriato e filha de D. Sancho,
É que eu te quero, é que eu te amo, minha
terra alta de azul e neve,
Que guardas, com zelo, a melhor metade de
Portugal.


Nuno de Montemor
- Amor de Deus e da Terra – Poesia 1925
- Rpazes e Moças da Estrela – Contos 1959