No cinquentenário da morte do escritor Nuno de Montemor, que estamos a comemorar, divulgamos hoje, para a nossa «Antologia do cinquentenário», mais um texto deste escritor. É um extracto do conto «A Excomungada» inserto no primeiro livro de contos do escritor, «Pobrezinhos de Cristo». Nele, como em muitas outras obras, Nuno de Montemor socorre-se de elementos etnográficos. Neste caso, trata-se de um texto que reflecte uma tradição da religiosidade popular.

Esta pequena narrativa passa-se no último dia do mês de Maio, o mês de Maria no quadro da religiosidade popular. Por isso o escolhemos neste final de Maio de 2014.

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Raparigas dos doze aos dezasseis anos vinham aos pares, vestidas de branco, de ramos nas mãos, apressadas e contentes, e, entrando no templo, iam tomar lugar certo nas duas alas de moças enfileiradas numa clareira, à guisa de corredor, que homens e mulheres abriam e guardavam, a meio da Igreja, desde o acro da capela-mor à porta grande.
Das duas filas assim floridas, derramavam-se, por todo o templo, perfumes de encantamento.

Ramos de rosas e cravos, alecrim e lírios, papoilas e alfazemas, trevo e botões de oiro, magarças e pionias bravas, mostravam-se ao longo de duas alas, como flores entrelaçadas em duas cordas invisíveis, a separar da multidão a pureza das donzelas, todas endomingadas nos seus vestidos leves e claros.
A Virgem, com o Menino nos braços, sorria no altar da direita, entre lírios e magnólias, tendo aos lados do Evangelho e da Epístola, para lhe receberem as flores, duas crianças a servir de anjos, com longas asas de veludo branco e vestidos cor-de-rosa, bordados a fios de oiro.

Quando, após uma oração, rezada de joelhos, a voz grossa da zeladora deu o tom de começar, as ofertantes ergueram-se, cantando:

Andai, andai vamos todas
Vamos todas, à porfia,
Oferecer as nossas flores
À Virgem Santa Maria.

O par da frente, destacando-se dos outros, veio então ajoelhar entre os anjos que lhe receberam os ramos, depondo-os no altar, enquanto as duas moças cantavam sozinhas:

Para compor o meu raminho
Colhi brancas açucenas,
Para oferecer à Virgem
Que consola muitas penas.

Depois ergueram-se, fazendo vénias à Virgem e aos anjos, e retiraram-se, de mãos postas, pelo meio das duas filas, a tomar o lugar ao fundo da Igreja, na cauda das alas, enquanto todas as donzelas repetiam em coro:

Andai, andai vamos todas,
Vamos todas à porfia,
Entregar os corações,
Ao coração de Maria.

E logo outro par da frente, findo o coro, vinha de mãos floridas, ajoelhar e cantar, entre os anjos, ao fundo do altar:

Eu compus o meu raminho,
Lá nas alturas da serra,
As flores perto do céu,
São as mais puras da terra.

E todos os pares, uns após outros, deixavam assim aos pés da Virgem, os seus versos e os seus ramos.
Ao cabo de meia hora, havia um montão de ramos, não cabendo no altar, os anjos tinham acumulado no supedâneo.
E a Virgem, depostas as flores, nesta última tarde de Maio, sorria, enternecida, a todas aquelas raparigas que lhe cantavam, saudosamente:

Já lá vai o mês de Maio,
Que nos deu tanta alegria!...
Todas ficamos entregues
Ao coração de Maria.

E de joelhos, a despedir-se, cantavam ainda, de lágrimas nos olhos:

Já lá vai o mês de Maio,
Já lá vai o nosso ramo…
Adeus, minha mãe, adeus,
Adeus até para o ano!...

 

Nuno de Montemor

- Pobrezinhos de Cristo -

(Contos, 1930)