Ao longo do ano de 2014, no quadro das comemorações do cinquentenário da morte do escritor Nuno de Montemor, fundador do Lactário, fomos aqui publicando alguns textos daquele escritor, constituindo aquilo a que fomos chamando Antologia do Cinquentenário.

Ao encerrarmos as comemorações, terminamos também esta iniciativa com a publicação de um texto em que se evoca a tradição da Fogueira do Natal. Ele é extraído do romance «A Maior Glória» considerado por muitos como uma das melhores obras narrativas de Nuno de Montemor.
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Noite de Natal, fria, escura, estrelada e mansa.
Por aqueles povos da serra imensa ganhara fama a fogueira que nesse ano Valverde ergueria ao Deus Menino.
Para ele dera o comendador castanheiros centenários, giestas e piornos, que dez bois acarretaram o dia inteiro, e, mal anoitecera, os moços rolando, a ombro e a pulso, para o meio do adro, o tronco chamuscado e negro que, por um rito velho, ficara do último natal, acenderam-lhe à volta as labaredas altas dos primeiros ramos secos.
À roda de Valverde, nas cumeadas e pendores da montanha, por cabeços de outeiros e covas dos vales, até onde a vista abrangia, outras fogueiras brilhavam crepitantes, à mesma hora, no escuro gelado da noite, como tributos ardentes que a serra ofertava ao Jesus Menino, a desagravá-lo dos gelos sofridos há dois mil anos no presépio de Belém.
Troncos que braços de dois homens não abarcam, convertem-se em brasas enormes, e rapazes valentes batem-nos com pinheiros verdes, levantando colunas de fogo donde se desprendem enxames de abelhas de oiro, que se perdem no céu escuro, acima do campanário afogueado.
Ai do avarento ou do rico que recuse àquele fogo o mais velho dos seus carvalhos, porque até as portas da casa lhe arrancam, para meterem na goela rubra do lume santo.
Moços, de pé, e velhos sentados em grandes pedras soltas, de faces para a fogueira, fazem largo círculo no adro, peitos e rostos a suar fogo, e as costas frias da geada branca que lhes vai caindo no dorso e fumega na terra e nos fatos, à volta do braseiro enorme.
Trinta léguas à roda, por vales e montanhas, as outras aldeias esqueciam momentaneamente as suas fogueiras, para olharem aquela gigantesca pira de chamas que afogueava a povoação de Valverde.
Passadas horas, as brasas enormes espalhadas no adro lembravam pedras vermelhas para a construção de um templo de fogo.
E mulheres e crianças acorrem com tigelas de barro, para levarem a sua brasa…
Assoprando-a, os lábios erguem nela a chama, onde acendem a luz da candeia que vai clarear a consoada, mas logo a enterram na cinza morna da pilheira, para atear o lume que fará as filhós da meia-noite e o arroz-doce do Natal.
Da benta fogueira se tiram, nessa noite e na manhã seguinte, os lumes de todos os lares; com eles se afugenta o frio de todas as casas, para que Jesus Menino, com a sua corte de anjos, passe gracioso, quente e alegre, a pôr um sorriso em cada presépio e uma prenda em cada sapato de criança.
Aldeia escura que não dê lume, como há-de vê-la e visitá-la o Deus Menino?...
E os anjos ajudam, do céu, a luz e o calor das fogueiras terrenas, espertando o fulgor dos astros, que cintilam mais na escuridão cerrada.
Nuno de Montemor
- A Maior Glória -
(Romance)