– Antologia do Cinquentenário -

Os livros de Nuno de Montemor constituem um manancial de dados etnográficos de incalculável valor. Por isso ler os seus livros é também visitar costumes e tradições das nossas gentes.

Como estamos na Quaresma, seleccionámos hoje, para a nossa ANTOLOGIA EM CONSTRUÇÃO do cinquentenário de Nuno de Montemor, um texto que narra o canto dos Martírios do Senhor e da Encomendação das Almas, tradicionais actos de piedade em muitas terras da Beira na época quaresmal e que ainda se mantêm em muitas das nossas aldeias.

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Sacudido por novo e supersticioso temor, voltou para o alpendre, onde se sentou no degrau cimeiro, abrigado do norte pela guarda da varanda enluarada.

E ali permaneceu escondido largo tempo, a rememorar os passos do seu calvário, até que, da entrada-mor da Igreja próxima, ainda fechada, lhe chegou, subitamente, o clamor de uma jaculatória, cantada por um coro de muitos homens:

Cristo Jesus, Pai do Céu, ouvi-nos!

E mal se extinguiram, no silêncio da noite, as últimas vibrações desta súplica ansiosa, outro grupo de vozes, mais distanciadas, reforçava no mesmo tom:

Senhor Deus, tende misericórdia de nós!

«Os martírios do Senhor!...» - murmurou o Brás.

A fúria do vento retalhava o canto, como esfarrapava as nuvens, e os ecos das serras e dos pinhais onde as vozes se acoitavam, repetiam, gemebundos pelas gargantas dos vales:

Senhor Deus, tende misericórdia de nós!

Depois, o primeiro grupo, já mais afastado, clamou nova jaculatória:

Jesus coroado de espinhos!

E o segundo, muito mais distante, respondeu:

Senhor Deus, tende misericórdia de nós!

Começados em frente da Igreja, ali findavam os Mistérios depois de, por largo tempo, em via-sacra evocadora, os dois coros percorrerem as ruas da procissão, parando, aqui e além, até enumerarem todas as dores de Jesus.

Nos breves momentos de silêncio, chegavam-lhe, das aldeias próximas, as vozes esvaídas de outros cantos iguais.

Cristo Jesus, perdoai-nos!

E Júlio Brás foi rezando e meditando por largo tempo, até, de novo, ouvir, perto de si, o clamor dos dois bandos que voltaram, já unidos, parando, a cantar, em face do templo.

Cristo jesus, Pai do Céu, ouvi-nos!

Senhor Deus, tende misericórdia de nós!

Em quantas noites da quaresma ele andava naqueles grupos que rodeavam a aldeia, abraçando-a, embalando-a, dolorosamente, na recordação das santas angústias, para que as famílias, ainda acordadas, depois de meditarem nas dores da Paixão, adormecessem na paz da salvação conquistada.

Tão vizinha da sua casa ficava a Igreja, que, terminado o canto dos Martírios, ouvia os passos dos homens subindo as escadeiras do campanário, a cantar a Encomendação das almas, que só nos últimos dias da semana santa não eram começados e intercalados pelas três badaladas lentas do sino.

E em breve o bando da torre cantou, em ritmo vagaroso e triste:

À porta das almas santas,

Bate Deus a toda a hora.

E as almas logo respondem:

- Ó meu Deus que quereis agora?

Do mais próximo e alto balcão, onde o segundo grupo se alcandorou, logo outro apelo veio:

Ó almas que adormecestes,

No sono doce em que estais!

Praza a Deus não acordeis,

No inferno dando ais…

As três badaladas seguiram-se então, lentas, cavas, dominadoras, que hoje eram supridas por três pancadas mudas no peito: «Mea culpa! Mea culpa! Mea culpa!»

E em breve foi a povoação inteira, mulheres e homens, cantando de todas as varandas, a unir os dois coros, num clamor imenso que enchia ruas e campos:

Ó almas que estais em pena,

E em penas duras estais,

Aqui vos damos esmola

Por almas de irmãos e pais.

E novo e vasto silêncio se abria para a reza dos Pai-Nossos e Avé-Marias.

De aldeia em aldeia, de torre em torre, as vozes dos crentes permutavam a comunhão das súplicas e dos sufrágios, como apelo antecipado à ressurreição que, em breve, se ergueria da terra em hossanas de triunfo.

E parecia que todo o mundo, ansioso, ia comungar o milagre da celeste alegria.

Nuno de Montemor

- O Crime de um Homem Bom -

(Romance, 1945)

15 de Março de 2014