Em conformidade com o que anunciámos há dias, iniciamos hoje a publicação do primeiro texto para a prometida ANTOLOGIA EM CONSTRUÇÃO do Cinquentenário da morte do escritor Nuno de Montemor, fundador do Lactário.
Começamos com um texto em que se fala da Guarda e dos seus nevões, no tempo em que a cidade acordava e se deitava ao som do clarim saído do quartel. Será que, neste Inverno bem austero de 2014, nos sentiremos retratados no texto de Nuno de Montemor?
O extracto constitui as primeiras páginas do romance «Glória em Sangue», escrito em 1946.
*** ***
Na Guarda e pela serra fora, em certos dias escuros de Inverno, a bruma é densa, vasta e profunda e se o frio da tarde a não congela, à flor da roupa, encharca, até à pele, dando aos vultos embuçados, que nela se movem, o aspecto estranho de mergulhadores, a passarem, pesadamente de escafandro, no fundo do mar.
Nessas horas, o vento é trama elástica a tecer a neblina grossa, que se cola, resiste e molda aos corpos molhados, a retardar-lhes os movimentos, na luz turva e vibrante de um dia submarino.
Quando a ventania é brava e se caminha contra ela, os homens curvam-se, cansados, para a frente, os músculos do peito e dos braços retesam-se, e só assim o passo rompe, tardo, incerto e curto.
Se, porém, o caminhante segue ao sabor do vento, a névoa é torrente de rio furioso, e os vultos impelidos pelas costas, correm destravados, desnorteiam, caem e levantam-se, quando se não arrastam como folhas velhas ao sopro do furacão.
E no cotovelo brusco de uma casa, nas encruzilhadas das ruas em trevas, os vultos por vezes entrechocam-se e trambolham, exasperados, cobertos de lama ou de neve.
- Maldita névoa!
- Estúpido vento! – Exclama-se.
E, de chapéus refincados até às orelhas, seguras as abas e lenços com as duas mãos, chales e capas desfraldadas ao vento, prosseguem a caminhada, aguçando a espádua, à guisa de quilha, ou firmando, por momentos, os pés, a fazerem de tronco suporte, para se equilibrarem a meio da torrente que os apressa ou retarda.
Se então o ambiente mais arrefece, o nevoeiro, tecelão e bordador, vai enredando e cobrindo, com fios de alvo gelo, tudo aquilo onde se esfia e passa: as gentes e as árvores, arbustos e veredas, igrejas e choupanas.
Instantes há, porém, em que os redemoinhos ou embates de ventos contrários embaraçam e suspendem o caminhante, que, subitamente, se vê sacudido e preso, no esforço de abrir rumo firme à sua volta, ou de escolher o melhor sítio onde tombar.
Pouco a pouco, com o entardecer, vai-se a bruma fechando em noite negra, porque o caramelo espesso encarapuçou as lâmpadas eléctricas, e os olhos já mal enxergam o trilho que se deseja.
É então o fundo do oceano, em treva plena, onde os passos se orientam a medo, como cegos que guardam, do seu tempo de videntes, as minúcias topográficas dos lugares e moradias.
Palpam-se, com as mãos, as portas para as reconhecer, tacteiam-se, com os pés, valetas e soleiras, enquanto o vento assobia nos fios telegráficos e nas teclas dos telhados, a rir dos mergulhadores batidos e cansados.
Depois, pela noite fora, a ventania que também cansa, principia de acalmar, mas já sem o calor gerado pelo esforço da luta, os viandantes param por momentos, nas estradas, exaustos, para de novo ganharem alento, a meio da cerrada névoa – escura massa de neblina morta, que agora se desfolha, brandamente em pétalas de neve.
Ai dos que então se atrevem a uma viagem!
Perdidos no campo rasado pela neve, a morte atira-os, ao menor descuido, para um poço de água, ou deita-os, inteiriçados, no sulco dos regos, quando os não afoga entre silvas de valados profundos.
Nesta escuridão de gélido Dezembro, com a cidade ainda adormecida, já o clarim regimental anunciava a manhã, no toque da alvorada, e ainda, à volta do quartel, a névoa era de breu, sem crepúsculo do alto, nem arrebóis do nascente, mas o vento amainara e, de cansado, mal se ouvia bafejar nas árvores, em sopros leves, intermitentes.
A neve deixara de cair em flocos largos, para se mudar em farinha moída e peneirada do alto, pelas nuvens.
Na cerca militar, as sentinelas que, durante a chuva, faziam a guarda envoltas em capas negras de oleado, luzidias da água, passavam agora alvas de neve, gritando, a custo, os brados vigilantes.
- Sentinela alerta!
- Alerta está!
- Passe palavra!
Nuno de Montemor
Glória em Sangue
(Romance, 1946)
26 de Fevereiro de 2014